Sifa Bacar: o exemplo de um sonho interrompido por uma união forçada
Sifa Ismael Bacar, 17 anos, interrompeu a sua formação escolar aos 13 anos, porque alguns dos seus familiares forçaram-na a casar-se com um líder comunitário, na localidade de Namilasse, Posto Administrativo de Chinga, distrito de Morrupula, província de Nampula.
“Obrigaram-me a casar com um senhor mais velho, na altura tinha 13 anos. Fui obrigada a abandonar os meus estudos e agora vivo muito mal”, desabafou.
Sifa divide a casa do marido com mais duas mulheres. É a mais nova das três esposas e, por imperativos socioculturais, tem de arcar com o maior volume dos trabalhos domésticos.
Não fala da idade do marido, mas diz que o enteado mais velho tem mais 12 do que ela.
“Sinto que ainda não estava preparada para ser mãe. Queria continuar a estudar e talvez alcançar o meu sonho que era de ser polícia.
Quando tive o primeiro filho tinha 14 anos e o meu parto foi muito complicado. Quase matava o bebé porque não conseguia abrir devidamente as pernas para libertar a criança. As coisas deram certo graças ao apoio das parteiras. É difícil ser mãe em tenra idade. Tornei-me adulta muito cedo. A vida que estou a levar não desejo a nenhuma rapariga ”, advertiu.
Sifa foi obrigada a abandonar a escola quando frequentava a sétima classe e hoje é mãe de dois filhos de três e um ano, respectivamente.
A história de Sifa Ismael Bacar confunde-se com a de muitas raparigas que, precocemente, são obrigadas a abandonar a escola para cuidar da família.
A situação da Sifa é o exemplo claro de que os casamentos prematuros e as gravidezes precoces têm sido um dos grandes obstáculos à educação da rapariga em Moçambique.
Dados do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) indicam que cerca de sete mil raparigas abandonaram a escola devido a gravidez precoce, e outras mil e duzentas por causa de casamentos prematuros, nos últimos três anos, em todo o país.
Segundo um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), publicado no ano passado, em Moçambique, nove em cada 10 raparigas ingressam no ensino primário, mas apenas 1.5% chega ao ensino secundário.
O documento revela que os casamentos prematuros, as gravidezes precoces e a fragilidade das leis são as principais causas de abandono escolar.
É um cenário preocupante mas que, no entender da Ministra da Educação e Desenvolvimento Humano, Conceita Sortane, não se esgota apenas nos esforços e medidas que a sua instituição deve tomar, sendo importante uma abordagem multissectorial na prevenção e combate contra todas as formas de violência contra a rapariga.
Segundo Sortane, o sector da educação está a trabalhar com os parceiros de cooperação na busca de estratégias eficientes de retenção da rapariga na escola, mesmo em estado de gravidez.
A governante enalteceu a necessidade de criação de leis que salvaguardem os direitos da rapariga.
Conceita Sortane referiu que uma das provas do comprometimento do Governo com a massificação da educação da rapariga foi a revogação do Despacho nº 39/2003, um dispositivo ministerial que, no passado, obrigava as raparigas grávidas a serem transferidas para o curso nocturno.
“Neste momento assumimos o compromisso de dialogar com os ministérios da Saúde e da Juventude e Desportos para a criação de dispositivos normativos de articulação e que garantam a provisão permanente de pacote de serviços integrados de informação, insumos, testagem regular e capacitação permanente dos professores, conselheiros de saúde e psicólogos, bem como inclusão de conteúdos sobre Direitos e Saúde Sexual e Reprodutiva nos currículos a nível das escolas, para a tomada de decisão segura e informada contra HIV, ITS, casamentos prematuros e gravidezes precoces’’, acrescentou a Ministra.
Teresa da Glória Xavier, mãe, encarregada de educação e mãe turma na escola primária e secundária SOS Herman Greiner – Maputo, fala da necessidade de aprovação e implementação mais rigorosa de instrumentos legais que protegem a rapariga, porque no seu entender a fragilidade das leis pode promover a prática de males contra a rapariga, na medida em que o violador sabe que nunca será punido pelas desgraças que provocou.
Conta que as suas tarefas de mãe turma lhe permitem ter contacto permanente com a vida escolar e sente que, em muitos estabelecimentos escolares do país, sobretudo nas zonas rurais, o ambiente escolar continua a ser caracterizado por um cenário de flagrante exclusão das raparigas e discriminação face às gravidezes de que elas são vítimas.
Teresa Xavier manifestou-se completamente contrária aos casamentos prematuros e gravidezes precoces na medida em que colocam em causa o futuro da rapariga, mas recebeu com muita satisfação a notícia sobre a revogação do Despacho nº 39/2003, porque tratava de forma diferente as raparigas e os rapazes para além de violar o Direito à Educação preceituado na Constituição da República de Moçambique.
“Engravidar antes do tempo já era uma penalização para a rapariga porque, desde logo, perdia alguns dos seus direitos sociais como brincar, divertir-se ou outras práticas da idade. Agora, impedi-la de continuar com os seus estudos por causa da gravidez era outra penalização. Por isso, a revogação desse dispositivo foi uma boa decisão, porque em vez de resolver, atrasava ainda mais a rapariga.
Contudo, isso não basta, ainda precisamos de leis que desincentivem algumas práticas. Temos que ter leis que punam severamente e exemplarmente aquele professor que engravida a sua aluna da tenra idade, aquele fulano, líder comunitário que se casa com uma menor, os pais ou outros membros da família que aceitam, em troca de algum bem, que a filha, sobrinha ou irmã abandone a escola e vá para o lar muito cedo”, finalizou.
““É preciso apostar na educação da rapariga”
A fim de nos inteirar das implicações dos casamentos prematuros na educação e no futuro das mães adolescentes e dos seus filhos, conversámos com Isabel da Silva, secretária executiva do Movimento de Educação para Todos (MEPT) uma rede de organizações da sociedade civil que trabalham em prol da educação. Nas linhas abaixo segue a entrevista.
Até que nível os casamentos prematuros e as gravidezes precoces influenciam na educação da rapariga em Moçambique?
Os casamentos prematuros constituem um impedimento à continuação de estudos da rapariga porque, a partir do momento que a mesma casa precocemente, é obrigada a ter que parar de estudar. Muitas vezes, se ela pára, obviamente que a hipótese de regressar à escola é completamente remota.
Uma vez casada, a rapariga tem de parar de estudar para assumir outras responsabilidades domésticas como por exemplo: cuidar dos filhos, do lar e da família.
Portanto, a questão da gravidez precoce, em algum momento, acaba sendo um impedimento para que a rapariga possa continuar com os estudos. Dos nossos trabalhos no terreno, a realidade aponta para uma vertente em que, uma vez grávida, a rapariga abandona a escola e poucas vezes regressa. Uma vez grávida ou casada, a rapariga tem de abandonar a escola para cuidar da família.
Como é que uma organização da sociedade civil que trabalha na promoção da educação se relaciona com estas questões?
O MEPT está a trabalhar na componente advocacia de educação e das questões de género, olhando especificamente para a educação da rapariga. Uma das coisas é advocacia junto do Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano para a melhoria de políticas de modo a que sejam favoráveis à participação e à permanência da rapariga na escola. Foi nessa senda que trabalhamos arduamente com outras organizações e parceiros para a revogação do Despacho nº 39/2003, que obrigava que toda a rapariga grávida fosse transferida para o curso nocturno.
É impossível falar da promoção do direito à educação da rapariga sem mencionar o Despacho nº 39/2003 porque, durante muitos anos, foi um instrumento de impedimento à escolarização da rapariga.
Também estamos a trabalhar com diferentes actores envolvidos na educação, como é o caso de direcções e conselhos de escolas, bem como o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, no sentido de que as próprias escolas sejam mais abertas a questões de género.
Entendemos que o ambiente escolar deve ser um espaço favorável também para questões de educação da rapariga, especificamente a questão de segurança, porque, infelizmente, em muitas das nossas escolas há sinais de violência e quem sofre com isso são as raparigas.
Junto com outros parceiros advogamos pelo melhoramento dos instrumentos de protecção da rapariga, para que de facto tenha um ambiente favorável e para que não desista dos seus desafios.
Como é que o MEPT acolheu a revogação do Despacho nº 39/2003? Sente que a decisão está a ser devidamente implementada?
Recebemos a notícia de revogação do Despacho 39 com muita satisfação, porque sentimos que a nossa luta como Sociedade Civil surtiu efeitos.
O Despacho vigorou cerca de 15 anos e nesse período quantas raparigas foram obrigadas a interromper os estudos? Contudo, a revogação não significa que está tudo terminado. É importante que continuemos o nosso trabalho de modo a reduzir o índice de violência que existe nas escolas. Também é importante o envolvimento das escolas, dos pais e da sociedade no geral, porque esta luta só será vencida com o envolvimento de todos.
A revogação do Despacho constitui um passo positivo porque as raparigas grávidas não serão impedidas de estudar por causa da sua condição. Com isso não estamos a dizer que queremos promover gravidezes em idade escolar. Pelo contrário, estamos preocupados com o bem-estar da rapariga.
Há quem olhe para as fragilidades da legislação como força motora dos males que prejudicam a educação da rapariga. Qual é a visão do MEPT?
Tem de haver instrumentos claros de seguimento da própria questão da violência. Há muitos espectos que ainda precisam de ser revistos nesse sentido. Sentimos que há fraco cumprimento da legislação em vigor. Temos muitos instrumentos legais bons, mas que não estão a ser implementados. Precisamos de um plano nacional de monitoria ao cumprimento das leis atinentes à protecção de rapariga.
Qual é a sua análise sobre a forma como a sociedade encara esta questão dos casamentos prematuros?
Não se pode falar da protecção dos direitos da rapariga sem envolvimento da sociedade. Todas as violações dos direitos da rapariga ocorrem na sociedade. Se cada um dos membros da sociedade fizer a sua parte em prol desta causa, tenho a certeza de que o mal pode ser combatido.
Infelizmente, ainda continuamos a sentir algumas reservas no seio da sociedade quando o assunto é abordar questões de sexualidade. Ainda estamos num contexto em que dificilmente se aborda aspectos relacionados com a sexualidade na família.
É importante que continuemos a fazer campanhas junto aos pais, líderes comunitários e religiosos para que possam saber qual é o impacto a curto, médio e longo prazo para uma rapariga que se casa ainda criança ou que engravida de forma precoce. A família, a escola, a rapariga, o rapaz, o professor e o líder comunitário fazem parte de uma sociedade. O contributo de cada um desses membros é importante para o sucesso desta causa.
Cada um no seu espaço pode dar o seu contributo. Cada um de nós deve assumir-se elemento chave na prevenção das gravidezes precoces.
Temos algumas zonas no nosso país onde a percepção é de que quando a menina se casa cedo vai trazer benefícios para pais. Isso não é verdade. Pelo contrário, estamos a incubar a pobreza. As gravidezes precoces levam ao afastamento da rapariga da escola, agrava a sua situação de sobrevivência, incluindo carências alimentares e outras necessidades básicas, representando um risco de saúde que se pode repercutir na criança.
Nessa senda, devemos continuar a educar as comunidades sobre a importância de deixar a rapariga casar-se mais tarde e depois de concluir os estudos.
Também é importante que as comunidades saibam o valor da educação ou do impacto da educação dessa rapariga a longo prazo.
Este artigo é da autoria da CECAP – Coligação para a Eliminação dos Casamentos Prematuros. A CECAP é composta pelas seguintes organizações:
ROSC, ACABE, Action Aid Moçambique, ADDC, AIRDES, ASCHA, MULEIDE, AMMCJ, Associação Solidariedade Zambézia (ASZ), Associação Wona Sanana, CESC, Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UEM, Comunidade Moçambicana de Ajuda (CMA), Coalizão da Juventude Moçambicana, COREM, Fanelo ya Mina, Fundação Apoio Amigo (FAA), FDC, Fórum Mulher, FORCOM, Girl Move Foundation, HACI, REPSSI, LeMusica, LDC, Linha Fala Criança, MEPT, WLSA, N’weti, Plan International, Pathfinder International, RECAC, Rede da Criança, Rede HOPEM, Save the Children, SOPROC, Terre des Hommes Itália, Terre des Hommes Schweiz, VSO, World Vision Moçambique, Young Women Christian Association, Associação Jovem para Jovem (AJPJ), AMODEFA, AGCD, Associação Progresso, REPROCRINA, UATAF-AFC, ChildFund, FHI360, Malhalhe, Nova Vida, AMPARAR, Right to Play, H2n