Filomena António: o rosto da negação dos direitos da rapariga
Humildade e simpatia são algumas características da jovem mulher que responde pelo nome de Filomena António, de 19 anos, mãe de três filhos.
Residente do bairro de Naminhuco, vila-sede do distrito de Moma, sul da província de Nampula, Filomena António foi forçada, pelos pais, a casar-se aos 14 anos.
Mena, como é carinhosamente chamada, teve que abandonar a escola formal para frequentar a madraça, a fim de aprender práticas da religião islâmica e, com o casamento prematuro, também passou a cuidar da família.
Conta que teve que enfrentar vários desafios, entre os quais, levantar-se todos dias às três horas de madrugada e caminhar dois quilómetros em busca de água, percorrer mais de 10 quilómetros para a machamba, frequentar a madraça, executar actividades domésticas e cuidar do marido e dos filhos.
A dura rotina impediu Mena de gozar a sua adolescência e hoje também está impossibilitada de desfrutar da juventude e dos seus direitos.
Com três filhos, de cinco, três e um ano respectivamente, Mena confessou à nossa reportagem que, quando criança, sonhava ser enfermeira, por ser uma profissão cuja essência é salvar vidas. Para tal, quer a Mena, quer as suas amigas amigos tinham noção de que para alcançar os seus sonhos deviam prosseguir com a educação formal.
Referiu que quando o seu actual marido, hoje com 51 anos, se apresentou aos pais para manifestar a vontade de casá-la, frequentava a sétima classe na Escola Primária Completa de Naminhuco Campo.
“Quando terminei a 5 ͣ classe, com 11 anos, fui aos ritos de iniciação onde fiquei quase três meses e perdi o ano lectivo. No ano seguinte, regressei à escola contra a vontade do meu pai que dizia que já era altura de ir ao lar. Com o apoio duma prima, que era professora, consegui terminar a sexta classe. Quando frequentava a 7 ͣ classe, um homem veio a minha casa pedir aos meus pais para se casar comigo. Eles aceitaram o pedido. Cumpriram-se com os rituais e daí fui ao lar, deixando para trás a escola e muitos sonhos”, disse.
A história de Filomena António é uma entre várias, em que as raparigas vêm interrompidos, muito cedo, os seus sonhos, devido aos casamentos prematuros.
No distrito de Moma os hábitos socioculturais obrigam a que as raparigas e os rapazes, ao completarem 10 anos de idade, sejam submetidos aos ritos de iniciação. Ao sair, os rapazes são libertados para continuarem com os estudos, mas as raparigas são direccionadas para o casamento, para formar família e cuidar dos filhos.
Os factores socioculturais aparecem a jogar ainda um papel relevante na definição de normas sobre a idade de casamentos. As disparidades regionais na prevalência dos casamentos prematuros sugerem que os factores socioculturais sejam apontados como uma das causas deste mal.
Um estudo intitulado, Casamentos Prematuros em Moçambique: Tendências e Impactos - da Coligação para Eliminação de Casamentos Prematuros (CECAP), indica que o casamento prematuro é um dos problemas mais graves do desenvolvimento humano em Moçambique, mas que ainda é largamente ignorado no âmbito dos desafios de desenvolvimento que o país persegue.
O documento também indica que as práticas socioculturais prevalecentes continuam a conduzir as famílias a casarem as suas filhas cada vez mais cedo, quando as raparigas ainda não atingiram a maturidade suficiente para o casamento e para a gravidez ou para assumirem a responsabilidade de serem esposas ou mães.
Moçambique encontra-se em 10˚ lugar do mundo, entre os países mais afectados pelos casamentos prematuros.
Dados do Inquérito Demográfico e Saúde (IDS 2011) indicam que 48.2% das raparigas casam-se ou são obrigadas a casar-se até aos 18 anos e 10.3% das raparigas casam-se até aos 15 anos de idade.
A problemática dos casamentos prematuros, ou melhor dito, uniões forçadas, é bastante preocupante de tal forma que, no entender das lideranças comunitárias, deve ser severamente combatida sob o risco de colocar em causa o futuro da nação.
Presentes nas auscultações de 2018 sobre o Anteprojecto da Lei de Prevenção e Combate aos Noivados, Casamentos e Uniões Prematuras, actualmente na Assembleia da República, as lideranças comunitárias foram unânimes em afirmar que os hábitos culturais nunca podem colocar em causa os direitos humanos em geral e da rapariga em particular.
“Impedir uma rapariga de estudar, transformar uma rapariga em mercadoria e obrigá-la a casar-se com um homem adulto, em troca de benesses, não é cultura, é crime. Por isso deve ser combatido”, sentenciaram.
Os líderes comunitários entendem que nenhuma sociedade deve tolerar situações de escravatura moderna, na medida em que, casar uma filha menor, com um homem adulto, em troca do dinheiro, é escravatura. Explicaram que a rapariga cujo sonho é interrompido pelos seus progenitores, devido à ganância, está condenada à desgraça.
Durante o processo das auscultações do Anteprojecto, os líderes comunitários realçaram a necessidade de existência de instrumentos legais que protejam a rapariga de uniões forçadas e punam os infractores, porque só assim é que a sociedade e o Estado terão legitimidade de agir contra os promotores deste mal.
“Nenhuma cultura deve estar acima dos direitos humanos, principalmente das crianças, raparigas e mulheres”, frisaram.
“Algumas práticas socioculturais promovem a violação dos direitos humanos”
Para Conceição Osório, coordenadora de Pesquisa da Women and Law in Southern África Research and Education Trust (WLSA – Moçambique), a cultura é importante para qualquer sociedade, porque ajuda no reconhecimento de uma certa identidade e faz com que as pessoas se sintam como pertencentes a um certo grupo.
Frisou que, com o passar dos anos, tem-se visto a evolução de vários modos de pensar e das práticas culturais, que vão mudando e se expressam a partir de novas formas .
Para Osório, não existe uma cultura fixa que não se possa mudar, mas no decorrer dessa mudança, deve-se prestar atenção para que não haja um choque com alguns direitos.
Portanto, é importante saber lidar com a mudança e com a cultura que viola os direitos humanos, para evitar que estas práticas passem para uma versão clandestina como já aconteceu e ainda acontece em certos meios.
Explica que a cultura muda e se alteram as formas de pensar e viver e não há nenhuma cultura que possa ser defendida contra os direitos humanos que são universais e indivisíveis.
Também referiu que o combate aos aspectos culturais que se opõem aos direitos humanos deve ser feito através de uma conjunto de estratégias, e que embora a existência de legislação seja muito importante ela tem que ser acompanhada de outras acções que permitam que as comunidades, raparigas e mulheres se apropriem de direitos nas suas vidas quotidianas.
No que tange aos ritos de iniciação, uma prática cultural vista como promotora dos casamentos prematuros, Conceição Osório considera-as como sendo um elemento de coesão, que condiciona as raparigas e os rapazes a adoptar um determinado modo de vida.
Ressalta que apesar de terem experimentado uma certa evolução no que respeita aos meios de execução e periodicidade, os ritos continuam ainda a transmitir conhecimentos sexuais e de submissão, que transformam o corpo da rapariga num instrumento de dominação ou mesmo numa espécie de bem de troca, usando o seu órgão vaginal.
“As danças, as canções que cantam nos ritos são muito sexualizadas, no sentido de transmitir que a rapariga está pronta para ter uma vida sexual e também agradar o parceiro sexualmente, bem como ser dona de casa. Geralmente nestas cerimónias as raparigas não são preparadas para ter uma vida sexual com prazer, mas para usar o sexo como um instrumento que agrade o homem e assim conseguir comida (arroz, milho, etc.)”, explicou.
A coordenadora de pesquisa da WLSA Moçambique considera essa prática como sendo muito violenta, principalmente para as meninas, pois são ensinadas a ser subordinadas, a obedecer e a ter expectativas em relação aos outros, esquecendo-se de si mesmas.
Considera que os ritos configuram identidades que violam os direitos humanos tanto da rapariga como do rapaz.
De acordo com a entrevistada, os ritos de iniciação estimulam os casamentos prematuros, visto que, na medida em que se diz que a menina está pronta, as famílias em algumas aldeias vão de porta em porta anunciar que já têm mulher para entregar ao homem, e na sua maioria essas mulheres são meninas de 12 a 13 anos que saíram dos ritos recentemente.
O conteúdo dos ensinamentos nos ritos de iniciação enfatiza que a rapariga deve, acima de tudo, ter um homem e estar sempre disponível a qualquer momento para o satisfazer.
“Com a evolução e o acesso às tecnologias de informação, existem meninas, em certos pontos, que fogem dos casamentos prematuros e pedem ajuda aos familiares que não compactuam com aquele acto. Outras até denunciam. E é interessante observar que mesmo nas zonas do interior há meninas que utilizam, por exemplo, personagens das novelas televisivas para adoptar outras atitudes. Essas atitudes aprendem dos personagens das novelas, que servem como fonte de inspiração.
Geralmente são personagens da mesma idade mas que têm um pouco de independência, com poder de escolha,” afirmou.
No seu ponto de vista, a escola não está a cumprir devidamente com o seu papel de transmissão de conhecimentos sobre este tipo de assunto. Os professores não ensinam temáticas referentes à cidadania, à tolerância perante a diferença e não criam debates.
A activista aconselha que se deve integrar no currículo nacional matérias ligadas ao género porque as raparigas não podem, estar somente na escola para aprender actividades curriculares. Também se devia discutir várias temáticas como os direitos humanos, entre outras.
A especialista em assuntos de género entende que deve haver maior compromisso para se eliminar os casamentos prematuros. Diz que não basta somente se criar leis. Também se deve levar as famílias a perceber que o casamento não serve para sair da pobreza e para pararem de forçar as crianças a casarem-se.
“A sociedade não se pode limitar a fazer discursos e palestras, o compromisso deve ser de todos, há necessidade de se criar debates sobre direitos e esses devem ser colocados por quem é de direito, ao grupo alvo mais afectado e interessado que é a juventude. A sociedade deve ter o papel estimulante para que existam mais divulgações de acções de advocacia, políticas públicas eficazes e que tenham alguma aplicabilidade. Os professores também têm um papel central de ensinar sobre os direitos e responsabilidades de cada um,” esclareceu.
A activista e académica entende que o comprometimento com os direitos das meninas por parte da sociedade ainda é fraco e, em certos casos, existe uma certa cumplicidade com as práticas que violam os seus direitos. Por um lado, continua, existe um discurso político de combate aos casamentos prematuros mas não se questionam as práticas culturais que o permitem.
“Os discursos dizem uma coisa e a prática é totalmente oposta. Repudiam os casamentos prematuros, mas salvaguardam as práticas culturais e a mesma percepção de que as mulheres servem para ser donas de casa”, lamentou.
Contudo, acredita ser importante estudar-se os hábitos culturais para não se ter uma ideia errada das coisas e não se falar do que não existe.
Acrescenta que há cada vez mais pessoas a afirmar a todo custo os seus direitos e as coisas estão em mudança. Contudo, toda a transformação leva tempo. Finalizou referindo que o principal responsável pela mudança de mentalidade são os indivíduos, dentro do seu próprio grupo e com a ajuda da sociedade. Indicou a necessidade de promover a educação tomando como exemplo as conferências em que as raparigas são as principais intervenientes
Este artigo é da autoria da CECAP – Coligação para a ROSC, ACABE, |
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